Vinícius Mendes
O quadro 'Proclamação da República', de Benedito Calixto; movimento que questiona rompimento com a monarquia ganhou força com as redes sociais | Imagem: Centro Cultural São Paulo |
Meses após o Marechal Deodoro da
Fonseca enganar a própria mulher, burlar as recomendações médicas e levantar da
cama - onde havia passado a madrugada daquele 15 de novembro febril - para
proclamar a República brasileira, o país já conhecia a primeira crítica
articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder em 1889.
Escrito
pelo advogado paulistano Eduardo Prado, o livro Os Fastos
da Ditadura Militar no Brasil, de 1890, argumentava que a
Proclamação da República no Brasil tinha sido uma cópia do modelo dos Estados
Unidos aplicada a um contexto social e a um povo com características distintas.
A monarquia, segundo ele, ainda era o
modelo mais adequado para a sociedade que se tinha no país. Prado também foi o
primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado
ilegítimo" aplicado pelos militares.
Hoje, 128 anos depois, o tema voltou
ao debate público: enquanto diversos historiadores apontam a importância da
chegada da República ao Brasil, apesar de suas incoerências e dificuldades, um
movimento que ganhou força nos últimos anos - principalmente, nas redes sociais
- ainda a contesta.
"A proclamação foi um golpe de
uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a
segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe
ilegítimo", disse à BBC Brasil o empresário Luiz Philippe de Orleans e
Bragança, tataraneto de D. Pedro 2º, o último imperador brasileiro, e militante
do movimento direitista Acorda Brasil. No anúncio do último congresso do
Movimento Brasil Livre (MBL), em que foi um dos palestrantes, Luiz foi
apresentado e festejado como "príncipe".
"Quando há ilegitimidade na
proclamação de qualquer modelo de governo, não se consegue estabelecer
autoridade e, dessa forma, não se tem ordem. É exatamente isso que aconteceu na
república: removeram o monarca e, no momento seguinte, foi um caos",
completa ele, justificando a partir da história os solavancos recentes da
democracia brasileira.
Retrato do Marechal Deodoro da Fonseca por Henrique Bernardelli; ele proclamou a República no Brasil após uma madrugada febril | Imagem: Museu Histórico Nacional |
Desde o impeachment
da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, o movimento pró-monarquia foi
impulsionado pelas redes sociais e pela presença de grupos monarquistas nas
manifestações contra o governo petista, entre 2015 e 2016 - muitos deles,
empunhando bandeiras do Brasil Império.
Um movimento de elites
A ideia de que a Proclamação da República foi um
"golpe" é engrossada pelo historiador José Murilo de Carvalho, que
acabou de lançar seu oitavo livro sobre os períodos monárquico e republicano do
Brasil: O Pecado Original da República(Bazar do Tempo, 294
páginas). Um dos intelectuais mais respeitados no país, Murilo também admite
que é possível discutir a legitimidade do processo, como reivindicam os
monarquistas atuais.
"Para se
sustentar [a reivindicação de legitimidade da proclamação], ela teria que supor
que a minoria republicana, predominantemente composta de bacharéis,
jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, alunos das escolas superiores,
além dos cafeicultores paulistas, representava os interesses da maioria
esmagadora da população ou do país como um todo. Um tanto complicado",
avalia.
Ainda de acordo com
Murilo, não apenas foi um golpe, como ele não contou com a participação
popular, o que fortalece o argumento de ilegitimidade apresentado pelos atuais
monarquistas. Para ele, a distância da maior camada da população das decisões
políticas é um problema que perdura até hoje.
"Embora os
propagandistas falassem em democracia, o pecado foi a ausência de povo, não só
na proclamação, mas pelo menos até o fim da Primeira República. Incorporar
plenamente o povo no sistema político é ainda hoje um problema da nossa
República. Pode-se dizer que as condições do país não permitiram outra solução
e que os propagandistas eram sonhadores. Muitos realmente eram", conta.
Luiz Philippe de Orleans e
Bragança: 'A proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos
grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O
que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo' | Foto: Ana Carolina
Camargo/BBC Brasil
Especialista
no período, o jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da
trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do "golpe". Para
ele, no entanto, o debate sobre a legitimidade da República é sobre "quem
legitima o quê", o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer
regime político.
"O termo 'legitimidade' é muito
relativo. Depende do que se considera o instrumento legitimador da nossa
República. Se ele for o voto, ela não é legítima, porque o Partido Republicano
nunca teve apoio nas urnas. Agora, se considerar esse instrumento a força das
armas, foi um movimento legítimo, porque foi por meio delas que o exército
consolidou o regime", diz.
Para Laurentino, a questão envolve a
luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos
republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de
"golpe". "O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma
coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O
movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930
foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas.
A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.
Para o historiador Marcos Napolitano,
professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP), é possível sim falar em golpe na fundação da
República. Já questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria
um revisionismo histórico incabível.
"Se pensarmos que a monarquia
era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição
ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da
República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio
acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.
Após 128 anos, Proclamação
da República ainda é alvo de debates
Segundo José Murilo
de Carvalho, é possível afirmar que a proclamação foi obra quase totalmente dos
militares, assim como conta o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889. "Só
poucos dias antes do golpe é que líderes civis foram envolvidos", explica
Murilo. Para o professor Marcos Napolitano, porém, o fato de ter sido uma
minoria a responsável por derrubar a monarquia não retira do movimento a sua
legitimidade.
"Qualquer
processo político está ligado à capacidade de minorias ativas ganharem o apoio
de maiorias, ativas ou passivas, e neutralizarem outros grupos que lhes são
contra. Nem sempre um processo político que começa com uma minoria ativa
redunda em falta de democracia. Esta é a medida de legitimidade de um processo
político. Muitos processos políticos democratizantes, que mudaram a história
mundial, começaram assim. O que não os exime de serem processos muitas vezes
traumáticos e conflitivos", explica Napolitano.
Monarquia como opção de regime político?
Orleans e Bragança
expressa uma alternativa que já existe há algum tempo entre um grupo restrito
de historiadores. O mais militante deles é o professor Armando Alexandre dos
Santos, da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Frequentemente
convidado pela Casa Real para palestras e eventos, ele é amigo pessoal de D.
Luiz Gastão de Orleans e Bragança - que seria o imperador do país caso fosse
uma monarquia - desde os anos 1980.
Para Santos, a
República representou a instauração de uma ditadura jamais vivida até então no
Brasil. "Foi uma quartelada de uma minoria revoltosa de militares que não
teve nenhum apoio popular. A própria proclamação foi um show de indecisões:
Deodoro da Fonseca, por exemplo, só decidiu proclamá-la porque foi pressionado pelos
membros do seu grupinho que precisavam de um militar de patente para
representá-los. Foi, acima de tudo, um modismo, uma imitação servil dos
EUA", argumenta.
Santos, no entanto,
não encontra apoio para sua tese na maior parte da academia. Para os historiadores
ouvidos pela BBC Brasil, o retorno à monarquia não está definitivamente no
horizonte político do país.
"O plebiscito de
1993 (para determinar a forma de governo do país) mostrou que há sólida maioria
favorável à República, apesar das trapalhadas do regime. Fora do carnaval, a
imagem predominante da monarquia ainda é a de regime retrógrado", afirma
José Murilo de Carvalho, seguido por Gomes. "Em um momento de discussão da
identidade nacional, se somos violentos ou pacíficos, corruptos ou transparentes,
vamos em busca de mitos fundadores. Um deles é D. Pedro, que era um homem culto
e respeitado. Esse movimento monárquico atual é freudiano. É a busca de pai que
resolva tudo sem que a gente se preocupe", finaliza.
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